Excerto final do filme "Tráfico" de João Botelho (1998)
A minha introdução à magia d'Os Desastres de Sofia. Um livro que foi uma recomendação literária da minha bisavó à minha avó materna para iniciar a minha mãe nas leituras, contou-me ela uma vez.
E a cópia que tenho: uma edição brilhante, do clássico da Condessa de Ségur com as ilustrações que Vieira da Silva fez sobre as ilustrações originais do livro, quando jovem.
"A Nova Direita, e com isso quero dizer sobretudo a moderada e liberal, modernizou-se, o que significa que encontrou modos mais delicados de fazer o que sempre fez – defender a tradição, a inevitabilidade de haver pobres, das mulheres ganharem menos, dos ricos serem o motor da sociedade, do casamento heterossexual ser a base da sociedade, etc.
Dantes fazia-se isso tudo através da religião e do Sangue (não o derramamento mas a transmissão). Agora, em democracia são precisos outros argumentos. A economia foi o principal nestes últimos trinta anos. O mercado livre encarregava-se de organizar a sociedade do modo mais «natural»: os pobres em baixo, as mulheres ao lado mas um pouco mais abaixo, etc. As minorias raciais porque tendiam a ser pobres, podiam-se manter no seu lugar discriminando simplesmente os pobres.
E assim conseguia-se um mundo onde não havia discriminação feita pela mão humana. Era o mercado a funcionar. O problema é que não havendo uma fronteira imposta pela força, havia mulheres que subiam nas hierarquias, às vezes apareciam negros ou ciganos. De repente, até era o próprio colega ou patrão que assumia a sua homossexualidade.
De repente, toda aquela conversa que se tinha para quebrar o gelo, para pôr a rapaziada à vontade, para mostrar que se fazia parte do grupo, se tinha tornado um pouco embaraçosa. O que se tinha feito desde sempre passava a ser um insulto para alguém. Já não se podia dizer que "se trabalhava como um preto" ou que às vezes "era preciso ser um pouco cigano", que "não se pode ser maricas" ou que "é preciso ter tomates" sem correr o risco que alguém apontasse que tudo isso implicava equiparar grupos inteiros de pessoas a escravos, ladrões, cobardes ou mulheres.
A solução que se foi arranjando para continuar a fazer isso foi invocar a liberdade de expressão. Pode-se dizer o que se quiser desde que não afecte a liberdade de outras pessoas. O problema é que isso não chegava. Porque a liberdade de expressão de alguém não pode impedir outra pessoa de discordar, de criticar. Assim, começou-se a dizer que chamar a alguém racista, sexista, homofobo, etc. não era liberdade de expressão mas censura.
Resolvia-se de o problema de quem insistia em criticar o preconceito estrutural da sociedade "livre" de mercado classificando-os como uma ditadura que censurava a linguagem e os costumes. A ideia da existência uma polícia da linguagem e dos costumes era importante porque permitia desviar as atenções dos atropelos quotidianos (violência sobre minorias, deportações, violações, etc.) para questões conotadas com superficialidade. Denunciavam-se o zelo com que um livro era tirado do currículo de uma escola ou a maneira como se criticava o uso da palavra «maricas» ou «preto». Centrar a discussão na linguagem, retirava-lhe legitimidade.
O problema é que não funcionava. Por detrás desta discussão toda com a linguagem, a desigualdade persistia, pessoas eram mortas, etc.
E, pior, normalizar a ideia que denunciar preconceitos equivale a censura dava uma desculpa e uma legitimidade democrática aos piores modos de discriminação, que podiam invocar o seu direito à liberdade de expressão, que começou a incluir o direito a não ser criticado – porque crítica é censura.
Não é o chamado "politicamente correcto" que provoca a aparição da extrema-direita, mas a ideia que se foi criando que combater o racismo, a misoginia, a homofobia e outras formas de preconceito, equivale a censura e a uma ditadura."
texto do Mário Moura publicado em 24.08.2017 no Facebook
Rua do Almada, Porto |
Porto, agosto 2017 |
do lobo mau.
que me tivessem avisado:
olha que ele, é lobo
em pele de cordeiro.
Ao final do dia subi a rua, cansada, de bicicleta pela mão, e ao passar pelo atelier vi uma rapariga muito delicada descer o passeio que eu subia, em direção ao um senhor que a esperava abrigado numa garagem. Era o Siza. Quando passei por ele, olhou-me com aquele olhar que acho que só ele tem e pareceu-me ver por segundos os olhos curiosos da minha mãe, que gostava de lhe confessar ter sido aluna dele há muitos, muitos anos, e que tinha aquela curiosidade corajosa que me parece inata de quem viveu há 40 ou 50 anos atrás.
Depois apercebi-me que o Siza sobreviveu à sua aluna, e que sobreviveu também a uma perda profunda, só para se agarrar à vida (e ao trabalho) numa vida tão longa e tão cheia.
Depois fiquei sozinha, a chorar na companhia da bicicleta, a sentir-me mais pequena que nunca, com a sensação daquela saudade que nos esmaga por dentro, e que nunca deixa de ser.
As coisas que fazemos só para sentir borboletas no estômago,
e perseguir essa sensação a vida inteira...
Porto, 2017 |
ilustração: Joana Estrela @dortyparker |
Era uma festa de estudantes universitários, a música era uma amálgama de músicas dançáveis, de várias épocas (anos 60, 70, 80, 90). Dançava como louca, sozinha, como sempre gostei de dançar. Era só eu e a música. Enquanto dançava aquele hit dos Doors, vi-o e tive a certeza que aquela música também era dele. Dancei para ele com essa certeza imaginada, que faria tudo mais romântico, mais certo.
Anos depois, lembrava-me em muitas situações da música do Rui Veloso "... não se ama alguém que não ouve a mesma canção". Que, apesar de ser uma ideia muito adolescente, tem o seu quê de verdade. Na música, o Rui Veloso leva a rapariga ao concerto, mesmo sabendo que ela não gostava.
Acho que nos fartamos de ser teimosos porque queremos provar que conseguimos o amor, que ele pode ser o que queremos ("...tu eras aquela que eu mais queria"), em vez de o aceitarmos tão imperfeito ou desadequado como a pessoa que amamos.
Mascarado de cantautor ativista dos anos 70, barbudo e despenteado, o Fachada cantou o Zeca como só ele, no meio de um centro comercial suburbano, em Agosto.
Se tivesse vivido os anos 70 quase que acreditava que teriam sido mais ou menos com aquela dose de improviso, loucura e suor.