O tricot dos dias

By sufragista - maio 08, 2013

© the purl bee
Um projeto a fazer todos os dias, nos intervalos das coisas importantes. Tornou-se um vício e um prazer imenso ver uma malha, densa e macia, a nascer-me das mãos. Tricot não é só passatempo, (para mim) tem que ser o meio para produzir um objeto especial, único e mais duradouro e com mais qualidade que qualquer trapo barato ou caro que se possa comprar (porque a qualidade já não tem nada a ver com preço).


A poesia (e a Cultura) que cabe num pedaço de malha tricotada — no colo como eu, ou ao pescoço, à portuguesa — é tão valiosa, que não deve ser reduzida (novamente) aos "lavores". Essa palavra detestável, que passou a significar a "manualidade", a coisinha feita à mão. Aquelas coisas que as avós e as tias faziam ao serão para matar o tempo e embelezar o lar. A estética dos lavores é a das coisas supérfluas, dos bibelots, do ornamento. E não deveria nunca ter sido confundida com o "artesanato", nem com a manufactura, processos de nível profissional, enraizados ou não na tradição, cujo objetivo é produzir manualmente objetos utilitários e funcionais, com uma linguagem visual adequada aos materiais e às técnicas utilizados, numa produção sistematizada. Sem adições, sem aditivos, e, em certos casos, tão próximos da Arte que tomam uma linguagem plástica (e um programa) própria do artesão.

malhas portuguesas
© Rosa Pomar



© Rita Cordeiro


Fazer tricot ainda lembra os lavores à maioria das pessoas. Lembra mulheres curvadas em tarefas infinitas, repetitivas e com fins superficiais. Enquanto o tricot (e o crochet entre outras técnicas) não se reconfigurarem socialmente, — pelas mãos dos ainda poucos criadores de formatos não-tradicionais para estas técnicas, ou (a propósito deste livro) na reconfiguração e atualização de desenhos da tradição —, a utilidade destas atividades e a sua expressão cultural será sempre traída por um preconceito generalizado (altamente presente no nosso país) que, por um lado, desvaloriza a manualidade e os produtos dessa manualidade e por outro caracteriza como exclusivamente femeninas estas atividades (precisamente pela falta de sentido prático da sua utilidade).



© Joana Pedroso



















Tudo isto porque eu gosto de tricotar em público: em transportes públicos, em jardins, em esplanadas. Não por vaidade ou afirmação, mas para preencher momentos de tempo vazios, e poder desfrutar de uma coisa boa quando se espera para chegar a algum sítio, ou quando se tem tempo e se disfruta desse tempo, ou mesmo só por vício de passar malhas pelos dedos e ver peças a crescer. A experiência de o fazer em público muda o próprio ato do fazer, torna-o importante, mais presente, e menos secreto, e poderá (?) mudar nos outros as ideias feitas acerca de uma atividade de velhinhas da aldeia, para uma coisa tão urbana como tricotar aos poucos, todos os dias de manhã, uma camisola no caminho para o trabalho.

A ilustrar estas ideias, trabalhos notáveis como exemplo do melhor que se faz, em português, e um livro já como bibliografia importante desta geração de fazedoras.

SaveSave

  • Share:

4 comments

  1. adorei o post Filipa, é isso mesmo, eu não gosto de perder tempo, estar parada ou ir a olhar para o telefone/tablet e essa é uma forma que tenho para aproveitar as viagens, porque quando chego a casa é um vortex daqueles...

    ResponderEliminar
  2. tal e qual! =))) gosto muito de te ler, sabes? tens que escrever assim "grande" e com propriedade mais vezes. beijinho

    ResponderEliminar
  3. que post maravilhoso! obrigada pela partilha :) *

    ResponderEliminar
  4. Anónimo15:00

    Estou totalmente de acordo com tudo e fico feliz em saber que há mais pessoas preocupadas com o flagelo dos "lavores femininos". =)

    Um post excelente e perspicaz!

    ResponderEliminar